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Sempre vai ser um caminho de fio de navalha.
A escrita.
Mas a condição de forasteira-de-dentro percorre para sempre quem não nasceu em vida-bordada. Não há a opção de “entrar”. Porque, no muito, mesmo quando, depois de uma vida de resilientes caminhaduras, o máximo a que a gente chega é essa coisa de ter que comer pelas beiradas. E o “quando muito” sendo algo-mesmo de ínfimos porcentos, ainda. Para raríssimas pessoas que conseguem não parar de rasgar os pés desvestidos dos tais cabedais-para-poucos-e-poucas.
Logo cedo, ou mesmo tarde da noite, o que a gente precisa mesmo é de um café: seja por hábito, ou só-sendo. Ao levantar, gosto até hoje do silêncio das cinco e meia, o escurinho do céu, com brisa de cidade maior, momentos preambulares, cochilentos ainda, em que o devaneio te pega de prontidão. Mas não demora muito para que a cidade inicie uma serventia que não deixa tanto espaço para resistência(s).
Os dias se escorrem todos de trabalho. Em troca, renovadas opções-sobrejornada. Transbordavam, há algum tempo, os fazeres feitos fora de casa, dentro-também, a todo custo, em qualquer momento, sem cessar, madrugando sempre a gente. Agora, com os privilégios da reclusão, as tardes e noites de pandemia vão aos poucos virando novamente ocasiões de vida-atravessada-de-palavras. Pelo menos elas dão mais conta de olhar para as intersecções de uma-nossa condição-de-mulher e não se desreconhecer tanto da gente. A escrita também enche de porrada, silenciosa que seja, aqueles momentos de ser obrigada a testemunhar a dor, própria e das outras pessoas. É o que também transforma.
De novo elas, recorrentes, as palavras, o tempo todo diante de mim [por vasculhar desentender inebriar fazer-em-gozo em-devaneio-com atropelar reumanizar]. Sem nenhum glamour, nem tanta-coragem-mais. Sem tanta-esperança, talvez-sim, assaz-assim. Viscerais, doloridas, até pulsantes, mas já sem esperar que elas-mesmas, palavras, expliquem aquela inexplicável quelque chose d’absent [et d’étranger] qu’ici-tourmente. [Encore.]. E vai chegando a um ponto em que desisto, por um momento, de tentar fazer delas profissão (tão-sonhada-sempre) de transvirar sentidos. As pessoas importantonas, ainda que incompetentes e tão só acostumadas-de-privilégios, piram quando a gente decide ocupar. E então elas oprimem o máximo que podem, chutando a gente ao descarte. A escrita passa a ser, então, necessidade. Que tinha sido encalacrada com a sensação [estranha lunática em-desjuízo] de que seria possível viver sem. Não, não é possível isso. Ainda que eu escreva no ar, ou no exíguo espaço (de resistência) que nos resta.
Lembrar hoje como a gente se deixa entrar num universo tão alucinante, ou tão ultrajante, de palavras fica sendo tarefa-vertigem. Um querer, um descompasso. Escamotear-se de pusilânimes batalhões de dor, a rota. Solidão de esquina, que, enfins, mesmo sem se ver, se adentra. A bell hooks, para uns, ensina. Para mim, ela nos aprende de erguer a voz...
Sina, saga, como não estar farta de dessentidos?
E daí a danação: não é possível desentender a estrada. Nem mudar de si.
Que seja, então, narrativa. 

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