pra Maryllu, uma querida, essa delícia,
ah, e(m) só(s), mundo dos outros, mundo da gente, cê também sente?
Música:
“Bad blue”, do Patrick Vian, álbum (delicioso) Bruits et temps analogues
Imagem,
da escultura: L’implorante (1900), da
(ela-diva!) Camille Claudel
O
menino chegava sem riso. Duas ou cinco da tarde, vez que madrugando-se mas
dificilmente com atraso, ele vinha. Em aproximação alheada, em vias até de
sumir-se. E de muito que assim, pelas quebranças lá-e-cá em curso de avenida,
de um bocado a outro. Ele aparecia. Andando, andando. Carinha dele encardida de
criança sem. E quase sempre debaixo de um silêncio-ferro. Josué – nome que
“como diziam”. Figurava, pros que olhavam tentando adivinhar as coisas,
descabido de qualquer violência. Assim sem vontade, pra se viesse pedir o que
fosse. Era ensimesmado, ninguém que entendia.
Tinha
ali sabe-se lá qual idade, no provável de que uns doze e poucos anos. Vivia ali
sabe-se lá onde, o que em bastantes desimportava, pensavam. O que as gentes
deviam ver sempre: que ele não era solicitador de nada, não dava a entender que
precisasse — nem de sapatos, nem dos de ter pra si, tampouco mesmo estava atrás
do de comer. Não era de nada disso. E sim, que o menino tinha uma querença,
certa ou incerta, pela companhia. Era precisão? Não dessas pessoas que dizem
“nossa, como está crescidinho, toma esse agasalho de presente, ó”. Que não, não
parecia sendo assim a premência em-dele. Pai e mãe — ou se se imaginasse ou
então eles batiam ponto numa agência de vender passagem por ali em rua aquela,
próxima, e o menino, quase sempre tediado de ter que ficar em casa depois da
escola até os dois chegarem e então jantarem e então isso e isso, Josué gostava
mesmo, e muito, era de se ver acompanhando ambos até a tal agência e, enquanto
trabalh(o)avam, de ficar pelos derredores cismando com as luzes lá do alto dos
prédios, e com as pessoas atravessando as ruas em reparando os prédios, e pra
um quase tudo de movimentado e mesmo enfastiável que ocorria, como ele enfim
via, na vida dos passantes da cidade. Que era de interior, pequeníssima.
Usava
— ele, sim, e diariamente — uma bermuda esfolada, impossível não imaginar que
fosse esfolada vendo diante da gente o Josué, que se diga. Mas não era esfolada
do jeito como primeiro se imagina, senão escorchada e batida de coisa outra:
quedas inúmeras que ele tinha levado da morte. É, da morte. Mas pode isso,
pessoa levar queda de morte? — era o que, num de início, se pensava
encafifando... Não só podia como era.
E
todos os que conheciam já o Josué por ali-pois — que sabiam um pouco de tudo da
história dele: o menino tinha, no de fato, desânimo grande pra quando hora de
comer, e isso vinha acontecendo fazia uns meses, e então eis o que também vinha
enfraquecendo ele muito, obrigando mãe e pai levarem quase semanalmente em
médico, como ele contava pra gente. Que até reza lhe tinham encomendado, mas
nadinha — o menino não comia. Da morte, decerto que ele escapasse em todos
eles, os tais tombos, fosse acaso ou por sina — não se sabia, como é que podia?
Josué
pulava então pedras, a gente hipotetizava. Não comesse tanto assim e... o que
seria? De modo que, não surpreendentemente, ele também dava ensejo de
pensamento outro, na esteira do primeiro: ficava ele em jogo de amarelinha de
trás pra frente, mas pretendia com isso era o quê, o menino? Ninguém atrevia.
Era ele estranhíssimo, cogitava-se. Temelequia-se.
A
camiseta que usava, até com certa elegantice de não ter sido simplesmente
ganhada com uso já de outrem, e até parecendo um bocado maior que o destino de
garoto tristonhinho em seus muros adiante ou aquém dele mesmo, a camisetinha
dele era azul. De uma feição até algo machucada, que era pra gente pôr sentido
que talvez estivesse judiando do corpinho amiudado — como era o dele.
E com aquele olhar de menino à espera — isso em muitos. Não de nada, era
de se supor, talvez que de mais um dia em que atravessaria a rua e fosse ter
com alguém, como eu mesma ali, olhando pro vazio do asfalto e pra escassez das
pessoas se lançando aos pedaços por ruas, viadutos, avenidas.
O
dia naquele quadrado — sala onde me trabalhavam à época — tinha sido
normalíssimo: o seu Valdomiro chegando depois de todo mundo, arrumando a mesa
dele, pedindo à Catarina pra mandar vir café com bolachinhas, não esquecendo o
telefonema matinal pra sua senhora dizendo que isso ou aquilo — “bom dia”.
Depois-que, o Matias era quem chegava até a sala do seu Valdomiro e começava a
tomar nota das reuniões do dia, de que fosse preciso isso e outros tantos —
eles conversavam, a gente punha só curiosidade, e então consentia. Nada muito
além era assim — tão percebido, tão... Quase sempre a mesma quase — rotina.
Papéis por conferir. Documentos a organizar. Assinaturas recolhidas sem muito
às pressas. À exceção de alguns dias, quando ali as coisas mais ferviam.
A
própria localização do Escritório de Contabilidade Alves e Freitas facilitava o
despercebimento nosso pras estranhices no próprio centro da cidade — ali era
lugar algo escuso até se fôssemos pensar que um edifício tão chamativo — quanto
modernoso — embaraçava a nossa vista quando era vontade ou preciso olhar
através da janela, pra lado de fora, algum. Também todo centro de cidade parece
mesmo um do mesmo, ainda que em tantos contornos peculiares que — e a gente não
se importava, como se sabe, e só se ia.
Era
por volta de uma da tarde quando foi, enfim, autorizado o nosso desjejum
naquele dia. E a gente até que adorava quando mais cedo um pouquinho assim —
quem não? Que houvesse, então, a certa boa disponibilidade de só descer os
cinquenta e dois degraus e dar na movimentada Avenida Bandeirante, que era onde
lembro ainda ficarem os lugares onde a gente quase toda ia comer por comprimido
— mas ainda se comia, e ainda bem que.
Foi
quando eu alcancei a rua já pensando no porquê daquilo: que pela primeira vez o
Josué — menino se atreveio a mim, ele que tão calado... E tinha sido como se...
num súbito que ele foi — se chegando:
—
Por que é que você pintou a unha de azul?
Eu
esperava nunca que uma pergunta assim.
E
sequer sabia por que tinha as unhas então de azulzando.
De
maneira que a resposta... ela eu não sabia nem dar. Porque talvez fosse um
jeito de olhar pras coisas e pensar cor. Azul. Ou então era vontade de lembrar.
Azul. Porque, ainda, possivelmente fosse um azul pra atravessar rua, com menos
ou mais coerência. E com todo aquele tempo, que a gente não tinha...
minhanossa, que danação!
O
azul das unhas, se por verdade, ou quando pouco, me livrava pelo menos de ter
naquele dia de acordar indispostada da vida — pensei. Ou de precisar deslacrar,
agastada, a janela pro dia vindo. Ainda ou praquele comer as frutas de manhã e
tomando o café forte — amargoso de sempre, indisponível pra pensar no de ter,
vontadear, comer... E lembrei, naquele momento, que o Josué também não comia. E
também fui achando que as unhas estavam enfim azuis porque... ora, a cor de
alguma coisa tem que vir de dentro. Não era assim? Quase que recobrando... minhanossa!
Pois
fosse. Porque eu estaria implacável se precisasse ir ter com os devaneios bem
ali, naquela hora. De trabalhar e esquecer e apenas sentir sem estranhamentos.
Mas que pergunta era aquela — o porquê de unhas azuis? isso é lá-coisa quê?
Parecia, no contrário de tudo aquilo que eu tinha conjeturado desde então, que
eu tinha era acordado algo hesitando... o mundo. Em visitação inesperada, mas
sempre de cabeceira, a uma ainda incerta condição de verdade dos dias todos.
Mesmo eu, desossando dali — pracolá pujança que corria veia adentro.
Intransponível. Cara de asfalto que faz rasgo em gente. Mas talvez fosse isso,
a razão pras tais unhas azuis do dia. Uma desrazão. E era.
Que
porque, embora aturdido, parecia viável o silêncio de ficar ziguezagueando
entre portas sendo lacradas bem diante de uma — muita incompreensão sentenciada
de há muito e outras apontando pra outras, e outras. Mas o Josué precisava ali
era de uma resposta, eu daria?
Em
segundos nada quadriculados, antes de respostar enfim ao menino eu acabava por
lembrar de uma outra história que de algum jeito tinha vindo como fresta. Um
desvio. Não era de propósito de jeito nenhum que eu tivesse pensado aquilo. Só
que foram — se amontoando na cabeça camadas depois de camadas de coisas ouvidas
ou lidas ou então — só lembradas... Fui pensando que fosse talvez por conta tão
só do que a gente pressente como... impreterível. Não era isso, ou
era? Mas a resposta, no despropósito de não saber como o quê:
—
Acho que pintei as unhas de azul pra combinar com a cor dos seus dedos, Josué.
E mesmo sem adivinhar que eu te conversaria hoje, depois de tanto tempo te
vendo por aqui...
—
Você está vendo meus dedos de azul, é?
—
Vejo. Não estão?
—
Pois eu não enxergo eles assim, de jeito nenhum possível.
E
nem eu via azul nenhum nos dedos dele, imagina...
—
Pra mim — continuava o menino — eles são da cor igualzinha a tudo o que olho; e
olha que parece que o meu olho é sem cor, porque eu vejo tudo de rabisco.
Ele
desandava, se parecendo açuladíssimo.
—
Mas então, eu tento olhar com muita força, mas muita mesmo, e pode ser de dia
ou de noite que eu consigo ver bem longe, parecendo que as coisas é que olham
pra mim de volta e que também posso desenxergar um tanto de coisa se eu quiser.
—
O tanto de tudo que quiser?
—
Às vezes é estranho, sabe? Minha mãe ia dizer que eu sou esquisito assim é
porque eu não gosto de comer, que por isso as pessoas ficam até um pouco
doidas, de desjuízo, quando não comem. Vendo coisa... Pode até ser, mas, no fim
das contas, eu penso que não é, nada...
—
Mas e os dedos, Josué? Por que você não vê eles azuis? — eu provocava.
—
Ah, não, não mesmo, não vejo de cor azul. Eu acho, por exemplo, que eles, os
meus dedos, é que... não sei... Vai ver que é por conta do que eu não vejo
direito, só se...
—
E de que cor eles são, como é que você vê, os seus dedos?
—
Vejo com cor de dedo, ora...
—
Ah, eu sei — foi só o que eu consegui dizer por último, quase não mais.
“Cor
de dedo.” De dedo. Só podia...
Enxerguei,
decerto, que os dedinhos dele estavam azuis. Mas, fosse ver mais profundo, tudo
no menino era furta...cor. Os cabelos, alaranjados. Dentes, em verde...limão,
eu juro. Ombros, vermelhos. Braço direito, marrom; esquerdo, cor-de-rosa. Os
pés a gente não via, mas no pressentimento seriam de um azul clarinho, feito
céu. Orelhas, brancas. Nariz e língua, em tom único — de hortelã. Mais isso e aquilo
outro.
Depois
de uns dias, fiquei sabendo que o Josué tinha ido embora dali, de vez.
E
enfins, justamente se a gente pensasse mais bastante numa então vontade pouca
do menino e no olho dele azul, que ele não via azul nada, cor nada, mas via só
vendo, era isso? Era, de certo, sim, o que a gente mais estranhava — e adorava
— nele...
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