o discurso de Luiz Ruffato na Alemanha


Eu não tinha ainda lido. E, ainda que vontadeando às largas ler o quanto antes, só fui ter com o discurso-este — que abriu a Feira do Livro de Frankfurt, em outubro último — por agora. Eis os tudos: a gente chora, em tantos, por dentro e com todos os cantos, mesmo os invisíveis de boca nossa, quando lê o que foi dito-lá pelo escritor Luiz Ruffato. É que dá entristecimento por as coisas serem aqui-assim — em justamentes. Há todo um engasgar-por-certo porque a gente então sente lá-fundo que é mesmo assim... como se a história fizesse pra mais de 500 anos de judiarias sem fim com os daqui.
É claro que o discurso dito "prevalecente" fica sendo outro país-mundo afora, a gente logo sente — já que cheio daquelas simplificações baratas de happy life segundo as patifarias infinitas que dão muito nos nervos da gente! Ou sendo: pras tais "antas poderosas", em primeiríssimo plano. Também, e em larguíssima abrangência, discurso outro praqueles covardes — do tipo: não leio nada, nunca li nada, nunca vou mesmo ler nada; à parte isso, sigo vomitando, com muita autoridade, todas as inverdades e barbaridades do mundo — que nem-sei-como-têm-coragem de apregoar isso que é papagaiado pela midiazinha marrom. Aff! E, infelizmente, ainda fica sendo outro o discurso que é metido goela abaixo daqueles que residuam seus tudos em sem fins de nadas — por necessidade, pusilanimidade, exaustão, cumplicidade-míope e/ou tão só dormência-dor.
O que continua dando mais nos nervos é uma tal classezinha disposta a "entendedora", que vem pelos corredores — banheiros, cozinhas, bares, restaurantes et al. — se pondo a repetipatatá, como se o sentir da gente fosse literalmente um penico, e dali-de suas posições muito confortáveis em amplas salas de jantar (ou mesmo nas escadarias de uma ilusória "superioridade" acreditada — logo, defendida), que "este Governo, anarquista-socialista-petista [ou qualquer outro -ista cismado ali, de seus carros tão misantropos] é que está acabando com o nosso [opa, de quem mesmo?] país...". Que isso e aquilo outro... Ê necessidade da tão Santa Paciência, minhanossa! Ora-vixi...! Que tem gente repetindo esse ridiculismo todo — tem! A gente escuta, a gente sabe. Dizem, no mais da insensatez, assim: que a culpa da nossa atarantada miséria é "deste atual Governo". Mas aí, pralém da Santa Paciência, eis desejo é de berrar de volta pra eles: Santa Ignorância. Porque, pela primeira vez na história de um país subalterno como o nosso, este que eles etiquetam tão estupidestrategicamente como "um Governo horroroso" é o que, pelo menos, vem tentando — como dá, é claro; como as corporações imbatíveis deixam, devolvendo aos que gotimetram suor e dor nos subempregos "ofertados" as tais migalhas bem-mesmo miudinhas; é também como as quais "elites nacionais" ainda admitem, sem que o "estrondo" sobrepuje o deles "sagrado esquema produtivo"; como é possível fazer pelos maltrapilhos sem ser morto na primeira emboscada; e, ainda, sem morrer de desgosto com a mentirada toda fabricada pelos papagaios midiáticos. Et al. Enfins! E aos bocados, a gente sabe, o discurso-outro-este-da-forjação-braba ainda por cima ressai com aquele infinito quê de alvo errado, é mais-que-óbvio e o que dá até enjoo na gente  já que contra um Governo que pelo menos vem tomando a peito a missão [já pré-imposta pelas tais "antas poderosas et alli" como impossível] de reduzir a atarantada miséria da gente, o que, aliás, ia e vai sempre contrariar elas, as grandes antas e seus sectários, mesmo os da tal classezinha-especializada, a gente também sabe... Não é preciso atravessar oceanos, não; ó o falatório todo aí, no mínimo muito pertinho: basta ligar a teledistorção dos dias todos ou conversar com os ignorantões-da-vez, que por decerto até adoram ser os macaqueadores das patifarias todas. Mas a tristeza enorme dá é de a gente pensar assim: será que tem gente que acredita mesmo nisso ainda, nesse consenso fabricado tão grosseiramente assim? Infelizmente, tem. Aos zilhões. A gente então sonha que isso — a patifaria toda, esta enfim "burrice em diversas cores"  pelo menos fique mais rarefeita...e menos perversa. A cada dia. Sonhemos. Com joelhos menos maquinais. E que se multipliquem as tentativas. 
Por um de enfins: é até estranho quando a gente ousa mandar às favas esse pra-mais-de-meio-milênio de judiaria com a gente... Mas então que seja assim-sempre: pelas vias de um discurso lúcido, sensível, com primor histórico e que, em vez de papagaiar uma conversinha de pandegosos vazios, ponha o dedo justamente nas nossas veias abertas... Isso que tão bonitamente, e com honestidade-além, fez o escritor Luiz Ruffato! Eis o bonito-que-há no Sonho, no renovar o homem usando borboletas. S.a.l.v.e!
[Créditos da imagem: Frankfurt Book Fair (logo) e Lucio Ramírez (foto). Uma nota: o discurso foi disponibilizado na íntegra pelo próprio autor.]  
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Frankfurt, outubro de 2013 | Luiz Ruffato
O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro — é a alteridade que nos confere o sentido de existir —, o outro é também aquele que pode nos aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas — ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
Até meados do século 19, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas, escritores.
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania — moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade —, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém...
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios — o semelhante torna-se o inimigo. 
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados. 
Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. 
E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais — ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples. 
A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.
Mas, temos avançado.
A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia — são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.
Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país paradoxal.
Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo — amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos...
Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro — seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual — como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora.

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