Invisíveis aqueles que não têm registro, nome próprio, sobrenome. Habitam o desconhecido, dividem um canto qualquer com panelas vazias e enferrujadas, tranquilizam-se ao relento, mal sabem balbuciar-se e sentem fome de tudo. Não compram, não aprendem as primeiras letras, não votam.
Também os que não opinam, que vão dar, resignados, nas grandes avenidas centrais, onde recolhem as migalhas de um ou outro saquinho pardo que embrulhava o desjejum de um sujeito qualquer.
Invisíveis aqueles que preparam diariamente as calçadas, cantarolando o seu desviver enquanto eliminam rastros, agacham-se, apanham um papel curioso, varrem o chão encardido e o colocam novamente à disposição das solas dos sapatos vindouros - gastos, novos, engraxados, rotos ou que valem fortuna, comprados sem cerimônias em lojas chiques, do estrangeiro.
Invisíveis os que madrugam, tomam o coletivo ou o trem - seguem para o trabalho descalços de imaginação e reproduzem procedimentos tantos necessários para, ao fim do dia, já exaustos, computarem a seu favor mais uma jornada de dever cumprido. Os patrões, ou seus gestores, foram indiferentes ao seu cansaço, à sua enfermidade, às aporrinhações familiares que levam-trazem todo dia de casa, sem intenção de resolver.
Invisíveis os que sofrem, os que riem graça de canto invisível da boca. Os que negam, os que sobem ladeira, os que não têm motivo para.
O café está pronto. A mesa, posta. A hora se atrasa quando é preciso. Lançar-se às ruas. Pessoas e sinais lembram a exatidão dos ponteiros, e o que não se adia torna-se questão para segundo plano. Os passos, ligeiros, seguem. E prosseguem. Os semblantes, naturalmente míopes, se atropelam em cordialidades ou desavenças com. Uma pausa para o almoço - rápida. Um desarranjo depois - sono. Nova interferência indicando o caminho: pegar a direita, dobrar a esquina e entrar no compartimento pavimentado, que também parece invisível aos que titubeiam.
À noite, quando todo o cansaço adormece, projeta-se novo dia. Os invisíveis reaparecem, espreitam do lugar que lhes cabe a imprecisão dos prédios, a ingratidão dos autos, o lufa-lufa dos ocupados, o desfazer dos que pedem, as indicações dos que vendem. Há anúncios por todo o lado: cobram a presença e a materialidade dos que cedem. Todos cedem, até muitos invisíveis. Cedem porque acreditam, porque querem, porque interferem, porque se calam. Também porque as saídas escasseiam, portas se abrem, corredores se bifurcam em miríades da não-vontade. Ou vontade. De esquecerem o cansaço, de brigarem pelas migalhas, de reforçarem o indigesto.
Nos dias de descanso, novamente se espreitam os invisíveis. Talvez estejam mais cansados, dormindo, limpando, tecendo, cozinhando, saltitando, batendo martelos na sonoridade de. Café-com-pão, café-com-pão, tic-tac, tic-tac.
Poxa, amiga, eu não tinha lido ainda esse texto. Quer dizer, se o li, foi quando não tinha maturidade ainda para compreendê-lo e apreciá-lo, o que se torna mesmo uma não-leitura.
ReplyDeleteMas hoje o (re)li e me encantei. Encantei-me com sua escrita fluente e boa de ler, ao mesmo tempo em que mais uma vez me assustei - é que o mundo é feio, e aos poucos vou descobrindo isso, vou desvelando, retirando o véu da perfeição que antes encobria o mundo, o meu mundo, e descobrindo as imundícies do lugar em que vivemos.
Nesse mundo (sobre)vivem os invisíveis, sim. Mas "o essencial é invisível aos olhos", já dizia o Pequeno Príncipe. E vc consegue perceber nesses invisíveis a essência deles, aquilo que os faz ser alguém - se é que isso é possível -, tornando-se estrelas ao menos no momento da morte ou na escrita de um texto. Mas será que todos terão sua "hora da estrela"? Temo em dizer que não. Mas digo assim mesmo, porque "não" é a resposta certa e infeliz.
Espero que as coisas mudem, e tudo se torne um belo "sim", um "sim" para a vida digna que todos merecem, mas poucos têm.